sáb, 12 de outubro de 2024

Variedades Digital | 05 e 06.10.24

VAMOS FALAR DE CLARICE?

Buenas!
Eu poderia estar falando de tanto coisa, como por exemplo, das chuvaradas que voltaram a assustar os gaúchos, dos pequenos tornados arrasando casas em cidades do interior, ou das águas que voltaram a invadir ruas na capital do RS, trazendo consigo os fantasmas de maio.
Quem sabe, poderia falar do calor recorde no centro do país, ou da fumaça que toma conta de tudo, que leva pessoas para hospitais com dificuldades respiratórias. Talvez falar da falta de chuva no centro-oeste, da seca histórica na Amazônia, da perda de milhões de árvores para as queimadas, em boa parte, criminosas…
Poderia estar falando da politicagem que toma conta do país, desde a cadeirada, passando pelas ofensas verbais e agressões físicas em SP, do tiroteio e prisões em Bagé de bandidos que tentam entrar na política. Já pensaram, nossos legislativos tendo bandidos eleitos? Deus nos livre guarde, né?
Também poderia falar das guerras, seja a promovida pelo Putin, atacando impunemente a Ucrânia há mais de dois anos. Teria mais assunto ainda se falasse da guerra promovida por Israel, que ainda usa o ataque covarde do Hamas em outubro passado para justificar a matança indiscriminada na Faixa de Gaza e, agora, ataca o Líbano, com a desculpa de se defender do Hezbollah, bombardeando casas e prédios, matando centenas de civis inocentes.
Poderia argumentar sobre o ataque israelense, digno dos filmes  do 007, para matar inimigos usando pagers e walkie-talkies. Falaria que fizeram isso desviando cargas e criando empresas falsas, matando dezenas de pessoas ao mesmo tempo, inclusive crianças inocentes que cometeram somente um crime, nasceram no lado errado da fronteira religiosa criada naquela região décadas atrás – ou milênios, se preferir…
Mas não, hoje quero falar de algo que traga beleza, de arte e cultura, quero falar da maior musa criativa da literatura brasileira: quero falar da Clarice Lispector.
Não falarei dela só porque nasceu na Ucrânia, de onde seus pais fugiram de outra guerra, a revolução comunista, em 1917. Quero falar dela não só porque tornou-se a escritora mais citada nas redes sociais desde a invenção do facebook, onde há toneladas de frases creditadas a ela, em sua maioria, de autoajuda, que em nada combinam com sua verve literária.
Não precisaria motivo para falar dela, mas vale dizer que foi citada recentemente por uma das mais belas e bem sucedidas atrizes do cinema mundial, Cate Blanchett. A atriz australiana não é só bela, é extremamente talentosa, já foi nomeada oito vezes ao Oscar, e ganhou dois!
No auge dos seus 55 anos, com tantos sucessos e prêmios, ela, ao agradecer pelo prêmio Donostia 2024 pelo conjunto da carreira, com os olhos úmidos e radiantes, disse que, nestes tempos incertos, encontrou coragem nas obras da escritora brasileira Clarice Lispector, “um gênio absoluto!”
Afirmou que a autora a inspira e leu trechos inteiros, como por exemplo: ‘Só se consegue a simplicidade através de muito trabalho. Então, coisas que parecem sem esforço exigem muita preparação’. E não parou por aí, ainda trouxe outra frase retirada de uma crônica do livro “A descoberta do mundo”: ‘Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei, e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos.’
Quem sabe, aproveitando a citação das frases – desta vez, legítimas – da Clarice pela Cate, que já foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista TIME, aqueles viventes que se alimentam de frases de autoajuda das redes sociais, possam ir na fonte, como fez a Cate.
Quem sabe possam deixar-se influenciar por quem tem algum argumento, abandonando os ‘coachs’ de coisa nenhuma e outros tantos criadores de frases de assessoramento digital (para não repetir a tão batida palavra: autoajuda), que infestam as redes usando o nome de alguém conhecido para ganhar algum renome.
Recomendo que larguem as redes e vão ler Clarice. Comecemos por “A hora da estrela”, um dos melhores livros da literatura brasileira e universal. E ao fazerem isso, saibam que este ainda é um dos livros em que Clarice menos pesou a mão, apesar de apresentar uma Macabéa sofrida, uma nordestina que tenta a vida no Rio de Janeiro, cidade que não está nem aí para sua inocência.
“Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” é um dos meu preferidos, pois apresenta uma mulher problemática num embate psicológico consigo mesma, apesar da imagem de superior, e que debate seus dilemas consigo e com um professor que a ajuda a enfrentar seus dramas existenciais.
Recomendo também o livro de contos “Laços de família”, imperdível, apesar de pesado. Uma obra vasta e densa como a dela, possui seus livros polêmicos, como “A paixão segundo G.H.”, amado pela maioria, incompreendido por muitos, um clássico, em que a personagem tem um diálogo “digestivo” com uma barata…
E eu posso dar tais dicas, afinal, não sou só um leitor, tenho formação na área, não sou um destes coachs de beira de estrada! Fiquemos, para começar, com esta lista. Querem mais, pesquisem outros tantos livros dela, vale a pena.
No mínimo, vão encontrar uma válvula de escape deste mundo cruel que apresentei nos primeiros parágrafos. Eu sei que ele vai continuar lá, te esperando, o mundo, sem pena ou dó.
Poderia inclusive, falar muito mais dos textos da Clarice, porque sei que não irão maquiar a realidade. Ela irá, tão-somente, iluminar sua leitura do que lá fora está. Ela é tão dura quanto a realidade, mas o faz com uma beleza narrativa ímpar, capaz de impactar vocês e até uma atriz de Hollywood…