Simone Nicolini, 28 anos. Rafael Gusmão, 29. Ela santanense, ele de São Borja, mas tendo passado boa parte de sua vida em Sant’Ana do Livramento. Apesar da idade ser parecida e da cidade ser a mesma, o marco da vida deles foi em outro lugar: no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no dia 27 de janeiro de 2013. Naquela madrugada, pelo menos quatro jovens que nasceram ou passaram parte de suas trajetórias em Livramento dividiram a experiência de uma tragédia sem precedentes que terá o julgamento iniciado no próximo dia 1º de dezembro, quase nove anos depois do maior incêndio do Rio Grande do Sul, o terceiro do Brasil.
Simone mudou-se para Santa Maria em 2010, aos 17 anos, como muitos estudantes: com sonhos e projetos. Para ela, o incêndio na boate Kiss deixou uma cicatriz que ainda está aberta. “Conviver com as questões da Kiss vai além destes oito anos. É uma questão que terei que conviver para sempre. Não tem como não recordar todo o sentimento vivenciado sobre essa tragédia”, relata Simone.
Mesmo após ter concluído o curso de Fonoaudiologia na UFSM, em 2015, Simone optou por continuar morando em Santa Maria. Na cidade que ainda vive o luto pela tragédia, a sobrevivente precisou de ajuda para encarar a tristeza e a dor. “Ao mesmo tempo, eu agradeci muito a Deus por ter saído viva e com saúde. Minha vida foi marcada por esse fato, não há como esquecer, mas é preciso seguir, continuar cuidando da gente, cuidando da mente. Por vezes, me pego pensando em tudo o que aconteceu, gatilhos muito fortes dentro de mim. Ainda mais com essa aproximação do julgamento”, conclui Simone.

Rafael Gusmão, que é natural de São Borja, mudou-se para Sant’Ana do Livramento ainda na adolescência. Ele conta que foi morar em Santa Maria para estudar Farmácia poucos anos antes do ocorrido e estava na casa noturna naquela noite para comemorar seu aniversário de 21 anos. “Como costumava frequentar a Kiss, resolvi reservar uma mesa em frente ao palco para celebrar com alguns amigos”, conta.
Rafael lembra que a boate costumava estar sempre lotada e que, por vezes, era muito difícil se locomover no interior do espaço. “Muitas vezes, os extintores de incêndio e as placas de sinalização eram retirados do local sem explicação. Neste dia, acompanhei tudo desde o início, a partir do momento em que o sinalizador foi aceso. Quando percebi a fumaça foi tudo muito rápido, senti uma ardência muito grande nos olhos e só consegui lembrar que o caminho do palco para a saída ficava em um corredor estreito em formato de ‘L’ e, neste momento, corri para a porta sem enxergar, pois havia muita fumaça e empurra-empurra. Chegando perto da saída eu caí e fui pisoteado, pois já havia muita gente no chão, alguns já desmaiados. Eu só senti que alguém me puxou forte pelo braço e, quando percebi, já estava na calçada do lado de fora”, relata Rafael que, mesmo com a perna ferida pela queda e uma queimadura no ombro, auxiliou na retirada das vítimas, ainda sem entender a dimensão do que estava acontecendo naquele momento.


O OUTRO LADO DA HISTÓRIA
Assim como a história de Simone e Rafael, existem outras 638 pessoas que sobreviveram à tragédia. Por outro lado, 242 vítimas não conseguiram voltar para casa, como foi o caso dos santanenses Pedro Falcão Pinheiro, então com 25 anos, e Dionata Kamphorst, com 18. São duas vítimas fatais que se juntam às outras 240 do incêndio.
Às vésperas do julgamento, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) está organizando excursões para que famílias, amigos e apoiadores possam se deslocar de Santa Maria até Porto Alegre para acompanhar o julgamento que iniciará no dia 1° de dezembro, no foro central da capital gaúcha.
Segundo o Tribunal de Justiça, o julgamento deve ser um dos mais longos e emblemáticos da história da Justiça gaúcha, considerando o tempo de andamento do processo, a complexidade do caso, o número de vítimas e a carga emocional envolvida.
Para Simone Nicolini, o julgamento precisa ser efetivado. “Não trará as pessoas amadas de volta, mas precisa ser conduzido para que a justiça seja feita. A justiça como reparação trata-se de uma forma de minimizar muitas dores”, destacou.
Rafael destaca que o julgamento demorou. “Por que o julgamento levou tanto tempo para chegar?”, questiona. E complementa: “que a justiça seja feita!”.
Lucas Noro
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