Buenas!
Dia desses sugeri a leitura de um romance que me é valioso, um verdadeiro divisor de águas em minha vida, sem exagerar na sentença. Esse livro abriu, literal e metaforicamente, algumas portas para mim, além de entregar sua essência literária diferenciada para a época e, inclusive, para os dias de hoje.
Estávamos na segunda metade dos anos 1990 e eu, apesar de já ser funcionário público, cursava o início da faculdade. Fiz Letras na universidade federal e tive a sorte de não só ler, mas debater com colegas e professores qualificados, os livros que nos obrigam a ler no colégio e que não os li.
Sim, confesso esse crime e entendo o espanto de meus leitores (soube que passaram de trinta, mas não vou comemorar até sair a próxima pesquisa do Ibope). Contudo, deixem-me explicar. Nunca gostei de ser obrigado a nada, afinal, ler é prazer. E esse nem foi o dilema do ensino médio público que cursei. A culpa, na verdade, foi das greves em sequência que forçaram os professores a priorizar trabalhos e provas. Ler é um privilégio para classes abastadas, dizem heréticos políticos em certo país. ..
Deixando de lado a política, segue uma dica preciosa para quem sofreu no passado mas tem interesse em retomar os clássicos: leia, debata, comente suas leituras como fiz na universidade. Com isso desenvolvi uma maturidade como leitor. Claro, não era nem sou uma sumidade no assunto (apesar de hoje me considerar um pouco, admito sem sofrimento). No entanto, um tanto mais velho, pude encarar com prazer algo que era obrigação no passado.
Bem, vamos ao livro, pois escrevo uma crônica, não um romance. “Memórias de um sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, foi publicado em fascículos no jornal Correio Mercantil, no RJ, entre 1852 e 1853, quando o Brasil ainda não tinha um José de Alencar muito menos um Machado de Assis.
Não acredito muito em destino, porém, essa história é curiosa e vou ter de contá-la. Machado devia ter seus 17 anos quando trabalhou como aprendiz na Tipografia Nacional. Colegas denunciaram que o jovem Machadinho ficava pelos cantos lendo e pouco trabalhando. Quando Almeida, que era o diretor da Tipografia, o chamou para conversar, surpreendeu-se que esse rapaz lia as obras em francês e inglês, “antes” de serem traduzidas. Indicou o rapaz para fazer algumas críticas teatrais em alguns jornais. Esse foi o pontapé inicial na carreira do maior escritor brasileiro de todos os tempos.
Aliás, desenvolvi uma teoria não comprovada que Machado escolheu o nome de seu romance mais revolucionário como uma espécie de homenagem ao seu primeiro mestre. “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de 1881, remete ao “Memórias…” de Almeida, que é considerado o precursor do realismo crítico e da ironia que seria o fio condutor do carretel literário machadiano.
O livro teve algum sucesso quando publicado em folhetim, assinando como: “Um Brasileiro”. Vejam como o ufanismo nacionalista não é uma novidade dos últimos tempos abaixo da linha do Equador. Como todo bom brasileiro sem família rica, conquistou algumas dívidas e, para superá-las, tentou um cargo político.
Uma reflexão plausível: nas terras tupiniquins parece natural os políticos se servirem do país, ao invés de servirem a ele. Fim da reflexão. Porém, o destino encurtou seus planos políticos e literários: quando em campanha, o navio em que viajava para o interior do Rio de Janeiro afundou e ele morreu afogado, com apenas 30 anos.
Fiquemos com seu legado, o livro. “Era no tempo do rei” é a frase que abre a primeira página. O rei, no caso, era Dom João VI, que veio para o Brasil em 1808, ainda como herdeiro. A história apresenta a vida de Leonardo: “um formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão;”. Quem descreveria um filho assim? Somente um escritor surpreendentemente moderno poderia fazê-lo.
Ele devia ter pouco mais de sete anos e já era o terror da vizinhança, quando seu pai entra pela porta e um homem foge pela janela. Indignado, o pai agride a mulher, enquanto o menino rasga alguns de seus papéis. Nisso, o progenitor levanta o guri pelas orelhas e profere uma frase emblemática: “És filho de uma pisadela e de um beliscão, mereces que um pontapé acabe com tua casta!” E senta-lhe um pé na bunda, jogando o menino no meio da rua. Ele corre para a casa vizinha e abraça as pernas do padrinho, um barbeiro, fazendo com que esse vire uma bacia com água quente sobre um cliente.
A mãe volta para Portugal com o amante e o pai abandona o filho, que acaba por ser criado pelo padrinho e madrinha. Leonardo enveredou para uma vida de aventuras, pequenos golpes e enganações, namoros e desnamoros, disputas por heranças, casamentos arranjados, engajamento à força policial, deserção, prisão e, para quebrar o ritmo, um final “pseudo feliz”, pois há “uma enfiada de acontecimentos tristes” após o casamento com Luizinha.
Leonardo é considerado o primeiro “malandro” e “suburbano” da literatura brasileira. Conseguia empregos públicos por apadrinhamento, não gostava de empregos com horários, levava algumas coisas escondidas para casa, preferia uma festa aos compromissos, e virou militar de carreira por favores familiares. Ou seja, não muito diferente do que anseia e pratica o povo de uma nação ficcional, que esqueci o nome…
Esse livro dá um tapa de luva de pelica na face da sociedade hipócrita da primeira metade do século XIX, tapa esse que poderia ser repetido “ad infinitum“, haja vista nosso comportamento. Quem o encarou no colégio ou maduro, como eu, há de concordar comigo.
Comentei que ele abriu algumas portas para mim, mas isso é assunto para a próxima crônica. Até lá!