Um dia de ocorrências registradas em Caxias do Sul corresponde a três anos de delitos cometidos na cidade agrícola de Montauri
A violência está ausente na memória coletiva de Montauri, cidade com 1.453 habitantes na Serra Gaúcha. Se o governo gaúcho comemora a redução de homicídios no Estado, que teve 1.793 vítimas em 2019 na comparação com as 2.362 vidas perdidas em 2018, os montaurienses precisam forçar a memória para apontar quando foi a última vez em que alguém morreu por meio de tiros, pauladas ou facadas.
A cidade nunca registrou um assassinato em quase 32 anos de emancipação política, e ninguém sabe ao certo quando uma morte violenta ocorreu pela última vez. Quem vive na pequena cidade entre Serafina Corrêa e Casca desfruta de um luxo feito de paz e respeito à vida.
Em Montauri, não será possível encontrar mães e pais que choraram a perda de seus filhos para a violência, alguém que tenha um familiar recolhido em presídio ou estatísticas preocupantes de insegurança. O patamar de Montauri também está acima das demais comunidades serranas. No ano passado, de 66 municípios da área de abrangência do Comando Regional de Polícia Ostensiva (CRPO), 40 não tiveram mortes violentas. Na lista, porém, há cidades que já registraram crimes contra a vida em anos anteriores. Montauri segue ilesa.
— Aqui é perto do paraíso — brinca o vice-prefeito, Cacildo Fernando Possa, 51 anos.
A reportagem percorreu a cidade na semana passada e teve dificuldade para encontrar alma viva pelas cerca de 30 ruas, com exceção de alguns aposentados que buscavam o refresco na sombra de casa ou jogavam cartas nos poucos bares abertos. Parecia até feriado. Entretanto, deu para perceber uma discreta vigilância atrás das janelas das residências e do comércio, indicativo de que nenhum forasteiro passa despercebido.
— Se algum desconhecido entra na cidade, todo mundo se avisa, a polícia fica sabendo. O pessoal só não alertou sobre vocês (da reportagem) porque provavelmente viram que estavam aqui na prefeitura — diz Possa.
Essa vigilância é comportamento recente e faz parte de um pacto para impedir que Montauri enfrente os mesmos problemas dos grandes centros urbanos. Contudo, não explica a inexistência de homicídios e feminicídios. Há cidades igualmente seguras e com poucos crimes na Serra, mas que registraram pelo menos uma morte violenta nos últimos 10 ou 15 anos, caso de André da Rocha, com 1,3 mil habitantes. Montauri não.
A tabeliã substituta dos Serviços Notariais e Registrais de Montauri, Cheisa Begnini, pesquisou nos livros de óbitos e não conseguiu identificar nenhum assassinato desde 1974.
— Antigamente havia registros onde só se colocava motivo ignorado no óbito. Mas estou há 12 anos no cartório e nunca registrei homicídio — revela a tabeliã.
O vice-prefeito lembra de um caso rumoroso no início dos anos 1980, possivelmente em 1981, quando uma briga de bar resultou na morte de um morador. Teria sido um dos poucos e também o último homicídio na cidade. É fácil compreender, portanto, porque a mensagem de boas-vindas no pórtico de acesso ao município não é mera cortesia.
“Aqui todo mundo se conhece da infância e se respeita”
Na tentativa de entender como um município consegue se manter isolado das ondas de intolerância, a reportagem foi aconselhada a buscar fontes no tradicional bar do Mior, na Rua Daltro Filho. O proprietário, Laurindo Mior, 79 anos, mantém o comércio há 48 anos, onde melancias disputam espaço com mesas de carteado.
A maioria dos frequentadores tem mais de 60 anos e nasceu em Montauri, portanto, viu a transformação do distrito em município e coleciona histórias passadas de pai para filho. Em 1904 chegaram os primeiros imigrantes italianos. Em 1936, a localidade já era distrito de Guaporé. A autonomia só foi conquistada em maio de 1988, quando ocorreu a emancipação. O bom é que não há casos de violência explícita para contar. No máximo, algum entrevero embalado por uma bebida a mais no copo.
— Ah, parece que uma vez, num baile lá por 1976, teve uma morte, mas foi na divisa com Vila Maria (norte do Estado). Uma vez dava muita briguinha em bar, essas coisas, mas o pessoal foi evoluindo — atesta Mior.
Antoninho Rossetta, 66, tem outra teoria.
— Aqui todo mundo se conhece da infância e se respeita. E tem mais: tu vai ficar numa bodega até tarde para fazer o quê? O sol desce, vou para casa — diz Rossetta.
A violência só chega a Montauri por meio do noticiário. Locutora da Rádio Montauriense FM, Sandra Rossetto lê no intervalo da programação musical os casos mais rumorosos que identifica na internet. Em relação à própria cidade, as notícias envolvem mais os serviços oferecidos pela prefeitura ou algum evento comunitário.
São os ecos de outras regiões que espantam. Na semana passada, Maria Sgarbossa Roso, 56, acompanhou as informações de dois ladrões que haviam sido mortos durante um assalto a uma propriedade rural no interior de Passo Fundo. Sentiu medo porque era a tradução de como a insegurança rouba a tranquilidade das famílias e alívio por saber que nunca houve um fato semelhante em Montauri. Por isso, quando abre a porta de casa para ir ao trabalho, sente-se motivada.
Maria escolheu a cidade como lar há cerca de 35 anos e não troca a rotina por outra. Para ela, a violência que um dia pode ter ocorrido de forma extraordinária em sua comunidade surge apenas como um borrão na memória.
— Tenho amigos de Canoas que vêm aqui para passear porque se sentem livres. Aqui, todos se conhecem — conta a mulher, apontando diversas casas ao longe para mostrar que sabe quem são os moradores.
Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Fonte: Gaúcha/ZH