A literatura tem o poder de nos transportar para outros mundos, reviver memórias e nos fazer refletir sobre a vida. É com essa premissa que o escritor Carlos Higgie, nome de destaque no cenário literário entre Brasil e Uruguai, encanta seus leitores e seguidores através de seu projeto digital: o “Baú Literário”.
A plataforma, divulgada no portal “Nordeste Consciente”, é o refúgio perfeito para quem aprecia a boa escrita, carregando o lema inspirador: “Cada texto, um tesouro escondido”. Carlos Higgie, com uma trajetória que se estende por décadas e coleciona prêmios internacionais, como os recebidos no Uruguai por contos como
Uma Vida Dedicada à Escrita
Nascido em Rivera, na fronteira uruguaia, e radicado há anos no Brasil—tendo passado por Porto Alegre, Camaçari na Bahia e, atualmente, em Gramado, Rio Grande do Sul—Higgie é licenciado em Letras (Português/Espanhol) pela UNIVALI e membro atuante de diversas academias, como a Academia Itapemense de Letras e a Academia de Letras de Blumenau.
ETELVINA (português-espanhol)
©CRISTINA BENTANCURT
Eu gostava do meu bairro. Morávamos ali desde que eu tinha cinco anos e minha irmã maior ia para o Segundo Grau; nessa época eram poucos os meninos que iam à creche.
Meus pais escolheram o lugar mais próximo das escolas maiores da cidade e do colégio de Segundo Grau. O bairro tinha, acredito que ainda tem, um nome grandioso: Bairro Universitário. Foi assim que deixamos o campo e passamos a viver na cidade.
Havia crianças no bairro e isso era maravilhoso.
Eu tinha sete anos quando descobri a casa de Etelvina, ficava perto da minha. Era uma casinha de madeira, minúscula. A porta principal dava para um lado da casa e para aceder a ela, tinha que subir umas por umas escadas de pedra. O pátio, à direita da porta, era de terra, tinha um cinamomo e umas malvas em latas de óleo vegetal que ainda conservavam a marca. Era uma casa de uma pobreza chamativa para aquele lugar.
Eu via poucas vezes a Etelvina no armazém do bairro e isso era raro porque os demais vizinhos nos encontrávamos praticamente todos os dias lá. Em realidade, a via quando brincávamos ao redor do quarteirão. Éramos os donos do bairro numa época em que as crianças tinham permissão para sair, sempre e quando avisássemos onde íamos andar e que voltaríamos na hora combinada.
Etelvina era extremamente magra. Lembro dos seus braços longos e seus pés delgados. Tinha o cabelo cinza e longo até os ombros. Com certeza ela mesma cortava.
Sempre estava com um roupão da mesma cor da pele e o cabelo dando aquela aparência fantasmagórica.
Um dia criei coragem e subi as escadas. Bati palmas; não tinha chamador e muito menos campainha.
Etelvina apareceu na porta e, com isso, me senti permitida a invadir seu terreno.
̶ Oi!
̶ Oi, minha filha. O que estás procurando?
̶ Não me daria umas malvas vermelhas? Eu coloco as pétalas nas unhas e assim brinco que sou grande. Eu colo com saliva.
Etelvina caminhou pelo pátio procurando as malvas em flor. Eu sabia perfeitamente onde estavam, pois várias vezes tinha olhado aquele pátio desde a calçada.
̶ Tenho sete anos. Vivo logo ali.
Etelvina me entregou um molho de malvas e se meteu de novo dentro da casinha.
Eu queria entrar e ver a casa por dentro. Nunca tinha estado em uma tão pobre. Desde o pátio não podia ver nada lá dentro porque estava muito escuro. Tinha três janelinhas pequenas, porém somente uma estava aberta.
Fui embora decepcionada; não tinha conseguido ver os móveis, o banheiro, a cozinha… O bom era que agora tinha um motivo para retornar, porque Etelvina sabia que eu colocava unhas de malvas.
Comecei a ir todos os dias. Etelvina trazia duas cadeiras de palha e a gente sentava à sombra do cinamomo. Eu falava bastante, contava coisas da minha casa, do colégio, do que brincávamos com minhas amigas. Ela não falava muito, acredito que até se distraía olhando as plantas enquanto eu tagarelava.
Sempre tinha olor a guisado e, de tanto em tanto, ela entrava para ver como estava o fogo. Tinha um fogão a lenha e tinha que cuidar para ele não apagar. Etelvina sempre cheirava a fumaça e o cabelo cinza estava ficando amarelo, como queimado.
Eu sonhava entrar e pensava como poderia fazer para que ela me convidasse.
̶ Posso ir ao banheiro? Estou fazendo xixi.
Ela me olhou e duvidou por um instante. “Está bem”, me disse, “vem que eu te levo”.
A casa era muito mais pobre do que eu tinha imaginado. Não tinha energia elétrica nem água encanada. Os pisos eram de cimento lustrado que, naquela época, era o mais econômico que podia usar-se e agora estão de moda.
O banheiro era diminuto. Numa esquina tinha um latão com uma bacia em cima. Do lado, no piso, um balde com água.
Busquei onde fazer xixi. Etelvina tinha encostado a porta de madeira sem pintar e eu não podia perguntar-lhe; além disso, me dava vergonha. Arrisquei-me. Fiz xixi ali, arrumei a minha roupa e saí.
Queria ir embora e contar para minha mãe como era a casa de Etelvina.
Minha mãe não entendia qual era meu interesse naquela casa e naquela mulher velha que parecia uma bruxa cinza, que caminhava com os pés para fora e as pernas rígidas, que não tinha família nem recebia visitas. Não me proibia de ir, porém me repetia: não come nada e, por favor, não toma chimarrão.
O de não comer nada seria para não deixá-la sem comida e o assunto do chimarrão seria de medo de que a Etelvina fosse tuberculosa. Minha mãe tinha um medo especial da tuberculose. Nunca nos permitiu comer “garrapinhadas” porque os vendedores assopravam o saquinho de celofane e também não podíamos comer sorvetes da sorveteria que estava lá na Cuaró, porque ficou sabendo que um dos vendedores tinha falecido de algo que não diziam, mas que, com certeza, era de “aquilo”.
Não sei de onde vinha tanto medo. Tínhamos um vizinho, seu Oliveira, que era muito magro e encurvado, tinha uma cor ruim e tossia. Quando o pobre homem passava pela nossa calçada e cumprimentava amavelmente, minha mãe fazia a gente segurar a respiração.
Agora penso na minha amizade com Etelvina, depois de décadas. Penso em meu neto de sete anos. Acredito que teria curiosidade e faria centenas de perguntas.
Será que às crianças lhes intrigam a velhice e a pobreza?
Em meus muitos anos de trabalho com crianças, percebi que nenhuma se considerava pobre e a pobreza dos outros tinha um atrativo mórbido; pobres eram os que não tinham casa ou não tinham família, os que batiam na sua porta para pedir pão ou sobras de comida. Talvez tivessem razão.
Uma tarde, na saída do colégio, passei pela casa. Talvez me convidasse a comer guisado servido em pratos de louça.
Um homem cortava a grama na casa de Etelvina.
̶ E Etelvina? ̶ perguntei ao homem da “azada”.
̶ Não sei, filha, eu só vim limpar este pátio para meu patrão.
̶ Talvez se mudou, disse minha mão quando contei para ela, decepcionada. ̶ Acho que tinha parentes em Tacuarembó.
Etelvina não se despediu de mim. Que estranho, eu era sua amiga!
Tinha ficado pendente conhecer o restante da casa, ver sua roupa, mesmo eu acreditando que tinha um só vestido cinza que lavaria pela noite para voltar a usar pela manhã; saber se tinha filhos, perguntar-lhe se não tinha medo de viver sozinha naquela casa tão escura…
Acho que me senti ofendida e queria que ela soubesse.
Ontem passei pelo bairro. Não existe o armazém. As casas seguem sendo modestas, porém já não há casinhas de madeira. Não estão os barrancos da esquina onde crescia a madressilva que arrancávamos para chupar o néctar.
Não vi crianças.
Ninguém me cumprimentou. Não os conheço.
Então percebi tudo. Foram necessários sessenta anos para interpretar a minha mãe.
RIVERA (URUGUAI)
ETELVINA
©CRISTINA BENTACURT
Me gustaba mi barrio. Vivíamos ahí desde que yo tenía cinco y mi hermana mayor entraba al liceo. Yo iba directo a primer año; en esa época eran pocos los niños que cursaban jardinera.
Mis padres eligieron el lugar por la proximidad a las escuelas más grandes de la ciudad y al liceo. El barrio tenía —creo que todavía lo tiene— un nombre grandioso: Barrio Universitario. Fue así que dejamos el campo y pasamos a vivir en la ciudad.
Había niños en el barrio y eso era maravilloso.
Yo tenía siete años cuando descubrí la casa de Etelvina, a la vuelta de la mía. Era una casilla de madera, minúscula. La puerta principal daba a un costado de la casa y para acceder a ella había que subir unos escalones de piedra. El patio, a la derecha de la puerta, era de tierra; había un paraíso sombrilla y malvones en latas de aceite que todavía conservaban la marca. Era una casa de una pobreza llamativa para ese lugar.
A Etelvina la veía pocas veces en el almacén del barrio y eso era raro porque los demás vecinos nos veíamos prácticamente todos los días, allí. En realidad, la veía cuando jugábamos alrededor de la manzana. Éramos dueños del barrio en una época en que los niños teníamos permiso para salir, siempre que avisáramos dónde íbamos a andar y que volviéramos a la hora acordada.
Etelvina era extremadamente flaca. Me acuerdo de sus brazos largos y sus pies muy delgados. Tenía el pelo gris y largo hasta los hombros. Seguramente se lo cortaba ella misma.
Siempre estaba con un “batón” del mismo color que la piel y el pelo, lo que le daba aquella apariencia fantasmal.
Un día me animé a subir los escalones. Llamé con las palmas; no había llamador y menos timbre.
Etelvina se asomó a la puerta y, con eso, me sentí permitida a invadir su terreno.
—¡Hola!
—Hola, mija. ¿Qué andás buscando?
—¿No me daría unos malvones rojos? Yo me pongo los pétalos en las uñas y así juego que soy grande. Me los pego con saliva.
Etelvina caminó por el patio buscando los malvones en flor. Yo sabía perfectamente dónde estaban porque varias veces había mirado ese patio desde la vereda.
—Tengo siete años. Vivo a la vuelta.
Etelvina me entregó un ramito de malvones y se metió de nuevo en la casilla.
Yo quería entrar y ver la casa por dentro. Nunca había estado en una tan pobre. Desde el patio no podía ver nada adentro porque estaba absolutamente oscuro. Había tres ventanitas pequeñas, pero solo una estaba abierta.
Me fui decepcionada; no había podido ver los muebles, el baño, la cocina… Lo bueno es que ahora tenía un motivo para volver porque Etelvina sabía que yo me ponía uñas de malvones.
Empecé a ir todos los días. Etelvina sacaba dos sillas de paja y nos sentábamos a la sombra del paraíso sombrilla. Yo hablaba bastante, le contaba cosas de mi casa, de la escuela, a qué jugábamos con mis amigas. Ella no hablaba mucho, creo que hasta se distraía mirando las plantas mientras yo parloteaba.
Siempre había olor a guiso y, de tanto en tanto, ella entraba a ver cómo iba el fuego. Tenía un fogón de leña y había que cuidar que no se apagara. Etelvina siempre olía a humo y el pelo gris se le estaba poniendo amarillo, como quemado.
Yo soñaba con entrar y pensaba cómo podía hacer para que me invitara.
— ¿Puedo ir al baño? Me estoy haciendo pis.
Ella me miró y dudó un instante. Bueno, me dijo, vení que te llevo.
La casa era mucho más pobre de lo que yo me había imaginado. No había luz ni agua corriente. Los pisos eran de hormigón lustrado, que en aquella época era lo más económico que podía usarse, y ahora están tan de moda.
El baño era diminuto. En una esquina había una mesita de latón con una palangana arriba. Al lado, en el piso, un balde con agua.
Busqué dónde hacer pis. Etelvina había recostado la puerta de madera sin pintar y yo no podía preguntarle; además, me daba vergüenza. Vi un agujero redondo en una especie de tarima bajita. Me arriesgué. Hice pichí allí, me acomodé la ropa y salí.
Quería irme y contarle a mi madre cómo era la casa de Etelvina.
Mi madre no entendía cuál era mi interés en esa casa y en esa mujer vieja que parecía una bruja gris, que caminaba con los pies para fuera y las piernas rígidas, que no tenía familia ni recibía visitas. No me prohibía ir, pero me repetía: no comas nada y, por favor, no tomes mate.
Lo de no comer nada sería para no dejarla sin comida y lo del mate sería por miedo a que Etelvina fuera tuberculosa. Mi madre tenía un especial miedo a la tuberculosis. Nunca nos permitió comer garrapiñadas porque los vendedores soplaban la bolsita de celofán y tampoco podíamos tomar helados de la heladería que estaba allá por Cuaró porque se enteró de que uno de los vendedores había muerto de algo que no decían, pero que, seguramente, era de “aquello”.
No sé de dónde venía tanto miedo. Teníamos un vecino, don Olivera, que era muy flaco y encorvado, tenía mal color y tosía. Cuando el pobre hombre pasaba por nuestra vereda y saludaba amablemente, mi madre nos hacía contener la respiración.
Ahora pienso en mi amistad con Etelvina, después de décadas. Pienso en mi nieto de siete años. Creo que tendría la misma curiosidad y haría cientos de preguntas.
Será que a los niños les intriga la vejez y la pobreza.
En mis muchos años de trabajo con niños, me di cuenta de que ninguno se consideraba pobre y la pobreza de los otros tenía un atractivo morboso; pobres eran los que no tenían casa o no tenían familia, los que golpeaban a su puerta para pedir pan o sobras de comida. Tal vez tuvieran razón.
Una tarde, a la salida de la escuela, pasé por la casa. De pronto me invitaba a comer guiso servido en platos enlosados.
Un hombre cortaba el pasto en la casa de Etelvina.
—¿Y Etelvina? —le pregunté al hombre de la azada.
—No sé, mija, yo solo vine a limpiar este patio para mi patrón.
Se habrá mudado, me dijo mi madre cuando se lo conté, decepcionada. Creo que tenía parientes en Tacuarembó.
Etelvina no se despidió de mí. ¡Qué raro, yo era su amiga!
Me había quedado pendiente conocer el resto de la casa, ver su ropa, aunque creo que tenía solo el vestido gris que lavaría de noche para volver a ponérselo de mañana, saber si tenía hijos, preguntarle si no tenía miedo de vivir sola en esa casa tan oscura…
Creo que me sentí ofendida y quería que ella lo supiera.
Ayer pasé por mi barrio. No existe el almacén. Las casas siguen siendo modestas, pero ya no hay casillas de madera. No están los barrancos de la esquina donde crecía la madreselva que arrancábamos para chupar el néctar.
No vi niños.
Nadie me saludó. No los conozco.
De pronto me di cuenta. Necesité sesenta años para interpretar a mi madre.
RIVERA (URUGUAY)
