Jornal A Plateia – Rádio RCC – Santana do Livramento

Por Charlene de Ávila e Néri Perin: A renegociação da dívida do crédito rural

 

Por Charlene de Ávila e Néri Perin

Iniciemos com uma pergunta: a renegociação da dívida do crédito rural será para todos os produtores?

Caros leitores, o produtor rural brasileiro enfrenta hoje um dos momentos mais críticos de sua história recente. A escassez de crédito, o superendividamento e a burocracia bancária formam uma equação que ameaça não apenas o equilíbrio financeiro dos agricultores, mas a própria sustentabilidade da produção nacional. Pequenos agricultores são os mais vulneráveis: sem capital próprio, dependem integralmente do crédito para sobreviver, enquanto os médios enfrentam endividamento crescente que ameaça a continuidade de suas atividades.

Diante destes fatos, surge a Medida Provisória nº 1.314/2025, que foi recebida pelo setor produtivo rural como um importante alívio em meio à crise climática e econômica que atingiu diversas regiões do país nos últimos anos. Mas, como não há almoço grátis e sempre existe uma pedra no meio do caminho do produtor rural brasileiro, vamos falar um pouco sobre a MP nº 1.314/2025 e a inconstitucionalidade da Resolução nº 5.247/2025 do Conselho Monetário Nacional – CMN.

A Medida Provisória nº 1.314/2025 surgiu como resposta institucional às sucessivas crises climáticas que devastaram a agricultura brasileira nos últimos anos. Seu propósito era claro: oferecer alívio financeiro aos produtores rurais que acumularam dívidas em razão de eventos climáticos adversos. Contudo, a Resolução CMN nº 5.247/2025, ao regulamentar a MP, não apenas criou obstáculos inexistentes na norma original, como também subverteu sua própria razão de existir, transformando uma política pública de amparo em um instrumento de exclusão seletiva.

A Resolução CMN nº 5.247/2025 padece de vício jurídico fundamental: ela inova no ordenamento jurídico criando restrições que a própria MP nº 1.314/2025 não estabeleceu. Esse fato viola o princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput, CF/88), segundo o qual a Administração Pública só pode agir quando autorizada por lei.

Eis o trecho exato dessa ilegal extrapolação feita pela Resolução nº 5.247/2025:

Resolução CMN nº 5.247, artigo 1º, parágrafo 2º, inciso I, alínea “a”: o empreendimento financiado objeto da liquidação ou amortização deve estar localizado em municípios que tenham decretado estado de calamidade pública ou situação de emergência em pelo menos dois anos no período de 1º de janeiro de 2020 a 31 de dezembro de 2024, em decorrência de enxurradas, alagamentos, inundações, chuva de granizo, chuvas intensas, tornados, onda de frio, geada, vendaval, seca ou estiagem, com reconhecimento do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.

Criou-se uma barreira geográfica, não amparada por lei, mas por ato infralegal, que fere diretamente o princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, e no artigo 37 da Constituição Federal. Ou seja, o papel de uma norma regulamentadora é operacionalizar, jamais restringir ou ampliar o que a norma superior determinou. Ao condicionar o acesso ao programa à existência de decreto municipal de emergência e à confirmação por dados do IBGE, o CMN criou requisitos novos, não previstos na MP.

Caros leitores, imagine dois produtores rurais vizinhos, separados apenas por uma estrada. Ambos perderam 50% da produção em 2022 e 2023. Um deles, por estar em município que declarou emergência, é elegível. O outro, em município que não declarou, fica excluído. É uma situação absurda do ponto de vista jurídico e social, incompatível com a função reparatória da política pública.

Além disso, a exigência de dupla decretação municipal transfere para o produtor uma responsabilidade que não é dele — afinal, o ato de decretar emergência é uma decisão política e administrativa da prefeitura, alheia à sua vontade. O produtor não tem qualquer controle sobre isso.

O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, em jurisprudências consolidadas, são firmes ao reconhecer que atos infralegais não podem inovar na ordem jurídica, criando obrigações ou restrições não previstas na lei que regulamentam. Este é um princípio basilar do Estado de Direito.

A exigência de decreto municipal de emergência ou calamidade representa a mais grave distorção da Resolução, e por quê?

a) Porque não consta na MP nº 1.314/2025: a Medida Provisória estabeleceu como critério as perdas sofridas pelo produtor em razão de eventos climáticos adversos, sem qualquer menção à necessidade de reconhecimento formal pelo município.
b) Porque cria discriminação arbitrária: dois produtores com perdas idênticas terão tratamento diferenciado apenas porque um deles teve a sorte de estar em município cujo prefeito decretou emergência. Isso viola o princípio constitucional da isonomia (art. 5º, CF/88).
c) Porque desconsidera a realidade administrativa: muitos municípios, especialmente os menores e com menos estrutura técnica, não possuem cultura administrativa de formalizar decretos de emergência, mesmo diante de crises evidentes. O produtor rural é penalizado por uma omissão administrativa que escapa completamente ao seu controle.
d) Porque ignora decretos estaduais: quando um Estado decreta emergência de forma ampla, há vácuo interpretativo sobre se isso alcança todos os municípios. A Resolução não prevê essa hipótese, gerando insegurança jurídica e potencial exclusão injusta.

Essa barreira geográfica não tem amparo legal, sendo juridicamente questionável e passível de declaração de nulidade pelo Poder Judiciário, além de criar insegurança jurídica. A Resolução CMN nº 5.247/2025 representa um caso emblemático de como a regulamentação pode subverter o propósito de uma lei. Ao criar restrições não previstas na MP nº 1.314/2025, o Conselho Monetário Nacional violou princípios jurídicos fundamentais, tais como o da legalidade, isonomia, razoabilidade e proporcionalidade. Também adotou critérios estatísticos inadequados para realidades individuais e, principalmente, abandonou o produtor rural ao permitir juros livres em violação à legislação vigente, bem como traiu o propósito da MP nº 1.314/2025, transformando alívio para os produtores rurais em exclusão.

Ora, caros leitores, a MP nº 1.314/2025 foi recebida pelo setor produtivo como um sopro de esperança em meio às crises climática e econômica. A Resolução CMN nº 5.247/2025 transformou essa esperança em frustração ao criar obstáculos burocráticos, técnicos e financeiros que excluem justamente aqueles que mais necessitam do programa.

Este não é apenas um problema jurídico-formal, mas uma questão de justiça social e efetividade de políticas públicas. O produtor rural brasileiro, que alimenta o país e sustenta significativa parcela das exportações nacionais, merece ser tratado com a seriedade e o respeito que sua importância econômica e social exige.

A correção dos vícios da Resolução não é apenas juridicamente necessária, é eticamente imperativa e economicamente racional. O tempo para essa correção é agora, antes que mais produtores percam suas terras e seus meios de vida por força de uma regulamentação inadequada e injusta.

Charlene de Ávila – Advogada, Mestre em Direito, Consultora Jurídica em Propriedade Intelectual na Agricultura no escritório Néri Perin Advogados Associados – Brasília/DF.

Néri Perin – Advogado Agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do escritório Néri Perin Advogados Associados – Brasília/DF.