A manhã de 30 de março de 2022 começou com tiros e confusão em uma casa do bairro Fortim, em Sant’Ana do Livramento (RS). Eram cerca de 6h06, quando uma equipe da Polícia Federal entrou na residência de G. S. O., 29 anos, para cumprir um mandado de busca e apreensão expedido no âmbito da Operação Cisplatina II, que investigava crimes de contrabando e lavagem de dinheiro na região de fronteira com o Uruguai.
Dentro do imóvel, o que deveria ser uma diligência de rotina terminou em confronto. Ao abrir a porta do quarto do suspeito, o escrivão da Polícia Federal M. L. M. V. foi atingido por dois disparos de arma de fogo. Um dos tiros transfixou o braço esquerdo do agente, sem atingir órgãos vitais. A equipe reagiu imediatamente e conseguiu render o morador, que se entregou sem resistência.
Da acusação à reviravolta: o pedido de absolvição do próprio Ministério Público
Inicialmente, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou denúncia imputando ao homem a prática de tentativa de homicídio qualificado. A denúncia foi recebida em 2 de maio de 2022, e a defesa apresentou resposta alegando que o acusado atirou acreditando reagir a um assalto, em uma situação de legítima defesa putativa — erro de percepção que torna a reação compreensível, embora baseada em falsa suposição.
Ao longo da instrução do processo, a defesa sustentou que os policiais não se identificaram verbalmente durante o ingresso na casa. Já o MPF, após analisar as provas, reviu sua posição. Em alegações finais, o órgão retificou o pedido de condenação e passou a defender a absolvição do réu, reconhecendo que havia uma “causa de isenção de pena”.
“A míngua de elementos que demonstrem de forma segura que o acusado tinha ciência de que era alvo de uma operação policial, mostra-se crível a sua versão dos fatos, no sentido de que agiu em legítima defesa putativa”, diz o parecer do MPF citado na sentença.
A madrugada dos tiros: o que mostram os vídeos e os laudos
De acordo com as provas técnicas reunidas no processo, as câmeras externas de segurança da casa registraram o momento em que a equipe policial chegou ao local. O Laudo nº 126/2022 apontou que os agentes estacionaram em frente à residência às 6h05min14s, e 40 segundos depois, já estavam na porta principal.
Não há registro de áudio, mas o laudo não detectou gestos ou movimentos labiais que indicassem comandos de voz — como “Polícia Federal” — antes da entrada no imóvel. Segundo a perícia, os policiais não aparentam anunciar verbalmente a operação no trajeto entre o portão e a porta da casa.
A defesa apresentou ainda um parecer técnico independente, que reforçou essa conclusão:
“Os policiais não proferem nenhuma voz de comando anunciando a entrada à residência ou qualquer sinal de comunicação aos eventuais moradores”, diz o documento juntado aos autos.
Dentro do imóvel, segundo o MPF, a dinâmica foi rápida: entre a chegada e os disparos decorreram apenas 1 minuto e 10 segundos. A perícia também constatou que as janelas e cortinas do quarto estavam fechadas, o que impediu que o morador visse o que ocorria do lado de fora.
Depoimentos contraditórios: o que disseram os policiais
Durante as audiências, os depoimentos dos agentes federais que participaram da operação divergiram sobre o momento e a forma como a polícia teria se identificado.
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O policial ferido, declarou que, ao abrir a porta do quarto, anunciou “Polícia Federal”, no padrão operacional.
“No momento em que fui bater na porta e ela se abriu, proferi o comando: ‘Polícia Federal’”, afirmou (conforme registro no vídeo 1, 06min56s).
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F. B. G., que estava logo atrás, afirmou:
“Acho que o M falou algo, mas não tenho certeza.”
A hesitação, segundo o juiz, fragilizou a consistência da versão da vítima. -
O Delegado E.F, que ocupava a terceira posição na formação tática, disse acreditar que houve comandos de voz, mas não soube precisar quais:
“Normalmente o P1 ou o P2 anunciam. Não me recordo das palavras exatas.”
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Raul M. S., outro agente, declarou que não ouviu identificação verbal e que só poderia relatar sua própria atuação.
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Já M. R. B., o último da equipe, afirmou que os comandos foram repetidos por toda a casa — versão que contradiz as demais.
Ao analisar os depoimentos, o Ministério Público considerou a prova oral “incoesa e demasiadamente frágil” para comprovar que a equipe se identificou de modo audível. O juiz concordou com a avaliação.
A reação de Gabriel Sastre: medo, confusão e erro justificável
Em seu interrogatório, o réu relatou que estava dormindo, em recuperação de uma cirurgia recente, e acordou ao ouvir passos dentro da casa.
“Achei que estavam invadindo. Peguei a arma que estava debaixo do travesseiro e, quando vi a porta abrir, atirei instintivamente”, disse o acusado (trecho registrado entre 13min10s e 14min45s dos vídeos 11 e 12).
Segundo a sentença, o réu estava nu no momento da rendição, o que indica que não houve tempo para se vestir ou analisar a situação. O juiz ressaltou que, nessas condições, a reação foi imediata e baseada em medo real, ainda que equivocada.
“As circunstâncias objetivas e subjetivas do caso — o horário, o barulho, o estado físico e o contexto de surpresa — demonstram que o acusado supôs, de forma justificada, estar sofrendo uma invasão”, escreveu o magistrado.
O raciocínio do juiz: o limite entre erro e crime
O juiz federal João Pedro Gomes Machado, da 2ª Vara Federal de Sant’Ana do Livramento, iniciou sua fundamentação explicando o sistema acusatório previsto na Constituição de 1988, que separa as funções de acusar, defender e julgar.
Ele destacou que o artigo 385 do Código de Processo Penal, que permitiria condenar mesmo diante de pedido de absolvição, não foi recepcionado pela Constituição, por ferir o princípio do devido processo legal.
“O juiz pode muito, mas não pode tudo. Não é um assistente da acusação; é um garantidor”, cita o magistrado, referindo-se a texto do jurista Vladimir Aras.
Com isso, o juiz afirmou que, havendo pedido de absolvição do Ministério Público, não cabe ao Poder Judiciário condenar o réu sem base acusatória.
No mérito, acompanhando o parecer do MPF, o juiz entendeu que o erro de G. S. foi inevitável e plenamente justificável, configurando legítima defesa putativa — situação em que o agente acredita estar repelindo uma agressão injusta, quando na verdade erra sobre as circunstâncias.
Trechos da sentença: fundamentos e decisão
A decisão enfatiza a coerência da tese defensiva com as provas:
“A reação do réu se mostra plenamente justificada pelas circunstâncias objetivas (acabara de acordar com o barulho de passos dentro da sua residência e na iminência de entrarem no seu dormitório) e subjetivas (temor pela sua vida e integridade física).”
E conclui:
“O acusado, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supôs situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima, ocorrendo, portanto, legítima defesa putativa.”
Com base nisso, o magistrado absolveu G. S. O. da imputação de tentativa de homicídio qualificado, com fulcro no artigo 415, inciso IV, do Código de Processo Penal.
Consequências da decisão
Com a absolvição, o juiz determinou:
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Revogação de todas as medidas cautelares impostas ao acusado;
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Isenção de custas processuais;
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Prazo recursal aberto para eventual apelação ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4);
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Após o trânsito em julgado, o arquivamento do processo.