A aprovação do texto final do Projeto de Lei nº 1702/2019 pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, no dia 1º de outubro de 2025, representa um dos mais graves ataques recentes à soberania agrícola nacional e à autonomia do produtor rural.
A proposta altera a Lei de Proteção de Cultivares (Lei 9.456/1997) que, sob a roupagem de modernização, esconde a legitimação de uma cobrança duplicada — e, portanto, abusiva — sobre o produtor rural brasileiro.
O texto aprovado amplia prazos de proteção e cria a possibilidade expressa de cobrança de royalties e direitos pecuniários sobre sementes reservadas para uso próprio. Em outras palavras: o produtor rural, que já paga quando compra a semente e, em muitos casos, também na colheita, será obrigado a pagar ainda uma terceira vez, safra após safra, pelo simples ato de reservar parte da produção para replantio — prática milenar, natural, e protegida no artigo 10 da atual Lei de Cultivares.
O PL usa indistintamente os termos “royalties” e “direitos pecuniários”, mas o efeito prático é cristalino: duplicar a base de cobrança. Primeiro, o produtor rural remunera a empresa na compra. Depois, paga novamente a cada safra, mesmo sem acessar qualquer nova tecnologia, apenas multiplicando biologicamente a semente. É um bis in idem (bitributação) travestido de legalidade. Cobra-se duas vezes pelo mesmo direito: uma no momento da compra, outra na reserva da colheita. Não há inovação tecnológica nova que justifique essa cobrança extra, apenas a busca por uma renda perpétua em cima do trabalho do produtor rural.
Esse Projeto, se convertido em lei, fere princípios básicos do direito e esvazia por completo o direito de uso próprio do produtor rural, transformando em letra morta a garantia até hoje “preservada” pela Lei de Cultivares.
É preciso dizer com todas as letras que o PL nº 1702/2019 não corrige lacunas normativas — cria um regime de sobreposição abusiva de direitos, ou seja, viola o direito de salva de sementes para uso próprio do produtor rural; institui cobrança duplicada, em claro bis in idem; coloca em risco a autonomia produtiva e a soberania alimentar do país.
Caros leitores, o problema começa quando o produtor rural exerce o direito previsto no artigo 10 da Lei de Cultivares (Lei 9.456/97): guardar parte da colheita para plantar na safra seguinte. Esse direito, expressão milenar da prática agrícola, é esvaziado pela interpretação das multinacionais e, lamentavelmente, pelos tribunais nacionais, vide o REsp 1.610.728/RS que chancelou a tese das multinacionais sementeiras.
Sob a justificativa de que cada replantio representa novo uso da tecnologia patenteada, as empresas exigem novo pagamento de direitos pecuniários, safra após safra. O resultado? O agricultor paga na compra inicial, pode ser obrigado a pagar novamente na colheita e ainda vê o seu uso próprio transformado em infração.
Essa lógica é juridicamente insustentável. É como se o leitor, ao comprar um livro, fosse obrigado a pagar nova taxa cada vez que abrisse suas páginas. A multiplicação natural da planta não pode ser confundida com a criação de uma nova tecnologia.
Com isso, o produtor rural fica de mãos atadas. Ele paga quando compra, paga quando colhe e paga quando guarda a semente. Um devedor perpétuo de uma tecnologia que já foi amortizada inúmeras vezes. E, mais grave, perde sua autonomia produtiva, tornando-se dependente de insumos controlados por poucas multinacionais sementeiras.
O produtor rural brasileiro vive hoje uma situação paradoxal: enquanto é exaltado como protagonista da segurança alimentar mundial, na prática encontra-se refém de um sistema jurídico que o obriga a pagar indefinidamente pelo mesmo direito. O campo tornou-se espaço de um bis in idem institucionalizado, onde multinacionais de sementes exploram a dependência tecnológica e os tribunais legitimam essa prática.
Longe de modernizar a Lei de Cultivares, esse projeto de lei consolida um modelo de dependência tecnológica e econômica que beneficia exclusivamente empresas transnacionais. Se convertido em lei, representará um retrocesso jurídico, social e econômico, em afronta aos princípios constitucionais que regem a ordem econômica brasileira. É urgente reabrir o debate. O produtor rural não pode ser condenado a pagar royalties e direitos pecuniários em cascata. O Estado brasileiro precisa decidir se estará ao lado da sua base produtiva ou se continuará a chancelar práticas que comprometem nossa independência agrícola.
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Charlene de Ávila Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura do Escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin Advogado Agrarista. Especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.