É uma cena que se repete milhares de vezes por ano nos balcões das instituições financeiras do país: o produtor rural solicita crédito para custear sua safra e escuta do gerente:
“Aprovado! Mas você precisa contratar nosso seguro rural, nossa capitalização e nosso plano de previdência. Sem isso, não liberamos o recurso.”
Essa prática de condicionar a concessão de crédito à compra de produtos adicionais tem nome técnico: venda casada. E é exatamente contra ela que existe um arsenal jurídico no país: Código de Defesa do Consumidor, resoluções do Banco Central, jurisprudências consolidadas, súmulas dos tribunais superiores. Mas há uma defesa que o agronegócio sistematicamente ignora, mesmo sendo a mais poderosa de todas: a Lei Antitruste brasileira (Lei 12.529/2011).
O mercado de crédito rural brasileiro apresenta características que tornam a aplicação da lei antitruste não apenas possível, mas imperativa. A concentração bancária é elevada, com poucos players controlando a maior parte das operações. Os produtores rurais, especialmente os de menor porte, encontram-se em situação de vulnerabilidade estrutural, dependendo dessas poucas instituições para viabilizar suas atividades. Essa assimetria de poder configura exatamente o cenário que a Lei 12.529/2011 foi desenhada para regular.
Primeiro, a posição dominante das instituições financeiras é evidente. O mercado de crédito rural brasileiro é altamente concentrado. Poucos bancos controlam a maior parte das operações, criando uma estrutura oligopolista. Os produtores, especialmente os menores, têm poucas opções reais — dependem desses players para viabilizar suas atividades produtivas.
Segundo, há o abuso de poder econômico. Quando um banco condiciona o crédito rural à aquisição de outros produtos, está utilizando seu poder no mercado primário (crédito) para forçar vendas em mercados secundários (seguros, capitalização, previdência e, principalmente, consórcios). Trata-se da definição clássica de abuso de posição dominante. O produtor, necessitando do custeio para plantar, vê-se coagido a aceitar consórcios de tratores, caminhonetes, implementos e até consórcios imobiliários que jamais solicitou. Isso desvirtua completamente a função social do crédito rural.
As consequências são devastadoras: produtores inadimplentes em consórcios que nunca quiseram; imóveis rurais oferecidos em garantia de produtos supérfluos; endividamento em cascata para pagar parcelas enquanto a safra não vem; abandono da atividade rural por inviabilidade financeira e, em casos extremos, até o suicídio.
Terceiro, o produtor é forçado a pagar por produtos que não deseja, muitas vezes a preços superiores aos de mercado, gerando custos adicionais que comprometem a eficiência de sua atividade econômica.
Enquanto outras legislações oferecem proteções importantes, mas limitadas, a Lei 12.529/2011 disponibiliza instrumentos de potência incomparável — multas que podem alcançar até 20% do faturamento da empresa infratora. Para grandes bancos, isso significa valores na casa dos bilhões de reais, suficientes para mudar completamente suas práticas comerciais.
A Lei Antitruste não é apenas mais uma opção no arsenal jurídico do agronegócio: é sua arma mais poderosa contra práticas abusivas. Enquanto outras normas oferecem proteções limitadas, a lei antitruste disponibiliza instrumentos transformadores que podem acabar definitivamente com a venda casada no crédito rural.
O setor que alimenta o mundo e movimenta trilhões na economia brasileira não pode aceitar ser refém de práticas comerciais abusivas que já deveriam ter sido extintas há décadas. A solução não está em criar novas leis, mas em usar adequadamente as que já existem.
Imagine um cenário alternativo: mil produtores rurais, orientados por advogados especializados em direito concorrencial, representam ao CADE denunciando práticas sistemáticas de venda casada pelos principais bancos do setor. A autarquia instala procedimento administrativo, comprova a prática e aplica multa de R$ 3 bilhões a cada instituição infratora. O impacto seria imediato: todos os bancos cessariam a prática no dia seguinte. Nenhuma instituição financeira arriscaria continuar com a venda casada sabendo que pode ser multada em bilhões. O problema, que persiste há décadas, seria resolvido em meses.
Esse cenário não é ficção jurídica — é exatamente como a lei antitruste funciona quando aplicada de forma adequada. O CADE já puniu grandes empresas por práticas similares em outros setores, sempre com resultados transformadores.
Diante disso, a pergunta é inevitável: por que não no setor do agronegócio?
Créditos
Charlene de Ávila – Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura do escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin – Advogado agrarista. Especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do escritório Néri Perin Advogados Associados.