Desde a década de 1960, mais precisamente em 1965, quando o crédito rural foi implementado como política pública estratégica para o desenvolvimento do agronegócio brasileiro, o que deveria ser instrumento de fomento à produção transformou-se gradualmente em mecanismo de extorsão institucionalizada — a venda casada praticada pelos bancos para concessão do crédito rural.
O crédito rural não é um contrato comum — ele é instrumento de política pública. Seus recursos são parcialmente subsidiados pelo Tesouro, justamente para promover produção de alimentos, regular mercados e apoiar o desenvolvimento rural. Quando um banco impõe produtos extras para liberar o financiamento ao produtor rural, desvirtua a função social do contrato e transfere ao produtor um custo que não faz parte da política pública, uma vez que a venda casada dobra o custo efetivo do crédito, transformando uma taxa de 8% em quase 20% ao ano.
E, como não bastasse esse fato, o Brasil sofre de uma patologia legislativa crônica, ou seja: a compulsão por criar leis sobre temas já exaustivamente regulamentados, numa dança macabra entre a inércia regulatória e o ativismo legislativo de fachada. O caso da venda casada no crédito rural é um sintoma perfeito dessa doença institucional que corrói a efetividade do Estado brasileiro.
Desde 2007, o Congresso despeja uma fila de projetos de lei sobre o mesmo assunto: PL 360/2007, PL 755/2011, PLS 103/2010 e agora, em 2025, um novo PL 2481/2025 considerado “histórico”, aprovado na Câmara. O resultado? Um verdadeiro monturo de normas, resoluções e projetos engavetados que, em teoria, protegem o produtor rural, mas na prática funcionam como mera decoração jurídica.
Mas o que muda agora com esse novo PL 2481/2025 que se diz “histórico”? Segundo analisamos, existe uma proibição expressa de condicionar o crédito rural à contratação de produtos/serviços que não sejam indispensáveis para a operação. Há exceções previstas: seguros obrigatórios pelo MCR (como Proagro ou seguro rural obrigatório para custeio de determinadas culturas), a possibilidade de multa administrativa, a comunicação ao Banco Central e até a perda de acesso aos recursos controlados do crédito rural para instituições reincidentes, além da legitimação para denúncia em órgãos de defesa do consumidor e comunicação direta ao MAPA/Bacen. Enfim, mais do mesmo.
O problema não é a falta de norma — é a falta de sua efetividade. No Brasil, o que se multiplica não são direitos, mas camadas de legislação, enquanto os mecanismos de fiscalização permanecem tímidos ou ineficazes.
Hoje o país possui o Código de Defesa do Consumidor (art. 39, I), que desde 1990 proíbe categoricamente a venda casada. Conta ainda com a Lei nº 12.529/2011 (Lei da Concorrência e da Ordem Econômica), que oferece ferramentas eficazes para combater a venda casada no setor bancário, além de jurisprudências e súmulas sobre o assunto. Também dispõe de um arcabouço regulatório do Banco Central que, em tese, deveria supervisionar o sistema financeiro. E mesmo assim, a cada legislatura, surge um novo projeto de lei para “proibir” aquilo que já está há décadas proibido.
Cada deputado que apresenta um projeto “inédito e histórico” sobre a proibição da venda casada no crédito rural está, na verdade, admitindo publicamente o fracasso do Estado brasileiro. Está confessando que décadas de legislação não passaram de exercício retórico, que os órgãos de fiscalização são inoperantes e que o sistema de Justiça é ineficaz. Mas, em vez de atacar essas causas estruturais, prefere-se a solução cosmética: mais uma lei.
O resultado é previsível e patético: instituições financeiras continuam praticando venda casada porque sabem que, na prática, nada acontece. Produtores rurais continuam sendo lesados porque não há fiscalização efetiva. E parlamentares continuam apresentando projetos “revolucionários” que morrerão nas gavetas das comissões, apenas para constar em seus currículos eleitorais que “lutaram pelo produtor rural”.
Enquanto isso, no mundo real, o produtor rural brasileiro continua sendo extorquido por práticas de venda casada que deveriam ter sido extintas há décadas. Bancos continuam condicionando crédito à contratação de seguros superfaturados com seguradoras parceiras. Cooperativas de crédito replicam as mesmas práticas dos grandes bancos. E o Banco Central continua sua letargia regulatória, fingindo supervisionar um sistema que opera na ilegalidade sistêmica e institucionalizada.
A solução não está em mais leis, mas em menos complacência. Precisamos que o Código de Defesa do Consumidor seja efetivamente aplicado. Precisamos que o Banco Central exerça seu papel fiscalizatório com rigor. Precisamos que o Ministério Público atue contra instituições infratoras. Precisamos que o Judiciário aplique as penalidades cabíveis.
Cada novo projeto de lei sobre a proibição da venda casada no crédito rural é, portanto, um atestado de incompetência coletiva. É a confissão pública de que décadas de trabalho legislativo foram inúteis, de que nossa burocracia é ornamental e de que nosso sistema de Justiça é decorativo. O produtor rural permanece refém de um sistema que o protege no papel e o explora na prática — uma cruel ironia que resume perfeitamente o paradoxo brasileiro: somos simultaneamente o país que mais produz leis e o que menos as cumpre.
Em resumo, a história da proibição da venda casada no crédito rural revela um Brasil que produz leis como se fossem enfeites, engaveta projetos como quem coleciona troféus e mantém o cidadão preso a uma realidade que jamais refletirá o papel teórico da lei. Um verdadeiro espetáculo de ilusão: o monturo de normas cresce, mas o produtor rural continua pagando o preço de uma proteção que só existe no papel.
A proibição da venda casada no crédito rural é, sim, uma vitória — mas não é o fim da batalha. O campo precisa continuar vigilante para que o crédito cumpra sua função social: ser o combustível do agronegócio brasileiro, e não mais um obstáculo no caminho de quem produz.
¹ Charlene de Ávila — Advogada, Mestre em Direito, Consultora Jurídica em Propriedade Intelectual na Agricultura do Escritório Néri Perin Advogados Associados – Brasília-DF.
² Néri Perin — Advogado Agrarista, especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados – Brasília-DF.