qua, 30 de outubro de 2024

Variedade Digital | 26 e 27.10.24

O PORSCHE, SANDERO E O DESODORANTE

Reprodução: Redes Sociais

Buenas!

Poderia colocar no título o nome dos condutores dos respectivos veículos, ou ainda, ter começado com os nomes dos usuários dos respectivos produtos acima, mas os nomes das marcas representam a diferença abissal entre os mundos que separam os respectivos motoristas. Ainda mais agora, um vivíssimo da Silva, o  outro morto e enterrado. Já falo do desodorante, calma.

Todos aqui ouviram falar sobre o caso do rapaz que, do alto dos seus vinte e quatro aninhos, utilizou um veículo de luxo da marca Porsche para “atropelar” o modesto Sandero do senhor de cinquenta e dois anos, ocorrido em São Paulo, na última semana.

O primeiro saiu de uma jogatina com amigos, bebeu alguma coisa sim, disse uma das meninas que o acompanhavam noutro carro, bem distante, é verdade. Não é fácil acompanhar o carro alemão quando ele acelera, ele foi feito para correr. Claro, nas autobahns, as modernas e seguras estradas do país bávaro.

Acontece que o rapaz de 24 anos não estava na Europa, rodava na capital paulista, onde acelerou sua potente máquina de mais de 1 milhão de reais. Como num brinquedo de bate-e-bate de parque de diversões, abalroou a traseira do pequeno e popular veículo francês, atualmente, um dos mais baratos vendidos no Brasil. Aliás, por isso mesmo, um dos mais utilizados para realizar trabalhos em aplicativos de transporte.

Coincidência ou não, era o que o senhor de 52 anos estava fazendo, encerrando seu dia de trabalho. Como uma boa parcela de brasileiros, o trabalho informal de motorista garantia o sustento para sua família composta por esposa e dois filhos jovens.

O jovem rapaz, tonto da batida que destruiu os dois veículos – afinal, nenhum deles era de parque de diversões, apesar dele ter idade para estar em um deles –, ligou para quem? Polícia, SAMU ou para a mamãe? Ganha um bombom Caribe quem acertar – sobraram da Páscoa aqui em casa, tenho de admitir.

A PM e o SAMU chegaram antes. Todos os socorristas estavam ocupados com o passageiro de seu filho, que estava em estado grave, e o motorista de 52 anos do Sandero. O primeiro está internado em estado grave, uma semana depois do ocorrido. O último não deu sorte, seu carro era popular, não resistiu aos ferimentos, e morreu logo em seguida. O motorista, o carro faleceu na hora.

Como boa progenitora que é, falou para os policiais que levaria o seu pobre filho para o hospital – pobre, aqui, foi empregado no sentido metafórico, tá bem? –, pois tinha machucado a boca. Acontece que, num acidente, os envolvidos devem realizar o teste de etilômetro, o famoso bafômetro, ou exame de sangue. Não sabemos detalhes, mas parece que um dos PMs autorizou e o outro não, mesmo assim, ela se foi, levando o jovem mancebo não para o hospital, mas para sua casa, digo, mansão.

Os policiais quando se deram conta, foram até o hospital e nada encontraram. Partiram para a casa da prestimosa mãe e foram ignorados. E agora perguntam-se os PMs? Eu, como policial que sou, perguntaria o mesmo: e agora, José? Como o José do Drummond, nem eu nem os PMs tínhamos a resposta.

Felizmente, o jovem se apresentou na Delegacia, que bom, tudo certo, não foi uma fuga. Ops, foi, porque apareceu quase 40 horas depois, de cara lavada, sem um arranhão do violento acidente. Vou repetir: sem um arranhão! Mas a mãe não o levou para o hospital? Não precisou…

E o teste do bafômetro? Assim como exames de sangue, 24h depois, todos inúteis. Sobrou, tão-somente, as declarações das testemunhas, que foram importantes para o delegado de polícia enquadrar o rapagão por homicídio por dolo eventual (quando assume o risco de matar), embriaguez e fuga do local.

Excelente enquadramento, dentro das possibilidades da legislação brasileira, além de pedir a prisão temporária do rapaz. Calma, não sejam precipitados e permaneçam sentados, caros leitores, a história se passa no Brasil. Para surpresa de zero pessoas, a juíza mandou liberar o rapaz que conduzia o Porsche de 1 milhão de reais.

Agora, pode ser que alguns se surpreendam, mas serão poucos. Em 2022, a mesma juíza, após audiência de custódia, manteve preso outro jovem, este, de 21 anos, que roubou duas garrafas de bebidas e um desodorante, dando um prejuízo de 60 reais para um estabelecimento comercial em SP. Era um craqueiro, como dizemos, já fez outro pequeno furto antes. Agora, por duas garrafas e um desodorante, foi para o presídio.

Devo continuar? A vontade que tenho, neste momento, seria largar o noticiário, deixar de lado o mundo externo e plantar batatas num sítio em Viamão. Sem internet!

Talvez assim, e só talvez, eu não fique sabendo de situações deste quilate, talvez eu consiga não me indignar com o mundo que me cerca, um mundo em que o condutor de um veículo de 1 milhão destrói a vida de uma família de um motorista de aplicativo que está em um veículo de 40 mil, financiado! E, como cereja do bolo, recebe punição muito, mas muito mais branda que a de um ladrão de desodorantes…

Qual será a cotação da batata na feira?

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