Buenas,
Vivemos em um país recheado de idiossincrasias! Palavra difícil, que deveria ter seu uso restrito às discussões entre intelectuais com echarpe e taças de vinho tinto, em frente a uma lareira iluminando uma biblioteca daquelas clássicas, com livros com capa de couro e poltronas preguiçosas. Mas o assunto não é o local, mas sim a capacidade do brasileiro de ter um comportamento tão seu, tão característico do povo que aqui habita, que nem chega a ser excêntrico, como prevê o significado dessa palavra tão complexa quanto difícil de escrever.
Falo isso de carteira assinada e tudo, pois sou daqui, criado e desenvolvido em território nacional, apesar de um perene suspiro para o velho mundo. Para provar, achei dia desses em minhas gavetas uma carteira do INAMPS, comprovando que estou perto de completar cinco décadas. Lembram dessas carteiras, em que era anotada a data das consultas? A mãe nos fazia madrugar, enfrentar filas e pegar a tal da “ficha”. Estou falando de um sistema arcaico dos anos 1970 e 1980, nada em relação a atualidade, onde tudo é moderno e feito via sistema digital, ninguém mais precisa madrugar, pegar filas, né? Ou estou enganado?
E mal chegaram meia dúzia das tão esperadas vacinas e o brasileiro demarca seu território. Muitos estão correndo para conseguir seu quinhão, porém nem todos respeitando a fila ou esperando a sua “ficha”, expressando toda sua idiossincrasia. De um lado aqueles que dizem: – Eu não vou tomar essa vacina chinesa, vou esperar a de Oxford. Aviso aos navegantes: todos os insumos, mesmo das vacinas fabricadas na Índia, vem da China, exigente leitor.
Alguns seres mais dissonantes afirmam que não vão tomar a vacina, pois não há garantias suficientes de que ela será eficaz, analisaram estudos que chegaram via zaps-zaps ou facebooks que afirmam que elas não são seguras. Dizem até que já viram jacarés circulando pelas ruas…
Para dizer o mínimo, meus filhos nascidos já no século XXI, também tinham carteirinhas de vacinação. Quando as campanhas eram anunciadas via mídia, nunca perguntei qual era a empresa fabricante ou a origem da vacina. A enfermeira aplicava, eles choravam, eu acalentava. Garanto-lhes que eles cresceram belos, fortes e saudáveis, como eu, sem doenças graves contagiosas, como pólio e sarampo. Doenças que foram erradicadas no século XX, porém, estão voltando, graças à ignorância que toma conta das redes sociais nos dias de hoje.
E tem aqueles que acreditam tanto na vacina, que fazem de tudo por ela. Ninguém me contou, eu ouvi de uma amiga, adulta, bem vivida, com nível superior, de que ela não teria problemas com a demora da fila de vacinação: – Eu tenho contatos na prefeitura, vou receber antes, não me preocupo com isso. Disse, com um sorriso de desdém quase ao natural, sem nem ruborizar.
E ela não é a única. Notícias pipocam de pessoas furando a fila Brasil adentro. Um adolescente de 14 anos foi vacinado, sendo que a vacina foi feita para ser efetiva somente em adultos. Um secretário de saúde do centro do país vacinou a si e à esposa, não sendo eles de nenhum grupo de risco. E eu, do auge da minha insignificância, me pergunto: em que mundo vivem essas pessoas e seu egoísmo? Não tenho dificuldades em encontrar a resposta: no Brasil! Sendo assim, tudo se explica…
Felizmente, essas atitudes estão sendo monitoradas e, quando descobertas, denunciadas. O Ministério Público e a Polícia Civil estão ameaçando prender quem furar a fila e, também, quem vacinar essas pessoas. Esse comportamento tão característico, que remete à palavra de difícil grafia lá do primeiro parágrafo, poderia ser caracterizado como uma esquisitice do brasileiro, que é um dos vários significados dessa mesma palavra. Mas não, eu prefiro chamar de sem-vergonhice mesmo, no sentido não de safadeza, mas de falta de moralidade. Infelizmente, isso não acabará tão cedo nesse nosso mundo tão mesquinho. Ainda vivemos no país em que impera uma velha frase: – sabe com quem está falando?
Em uma palestra, o professor de história Leandro Karnal dissertou sobre a diferença entre moral e ética. A moral cristã nos faz pensar que temos que fazer o certo porque um deus está sempre a nos vigiar. A ética aristotélica prega que devemos fazer o certo, simplesmente porque é o certo.
Por que é tão difícil fazermos isso? Não importam as nossas crenças religiosas; o que temos de fazer é tão claro que qualquer criança (sem a influência de um adulto) iria entender. Temos pessoas sérias sim, não somos uma completa perdição, mas são minoria! Pergunto à grande massa dos brasileiros, quando irão mudar? Quando irão fazer o certo simplesmente por ser certo, não só porque não serão descobertos? O que nos falta para mudarmos o comportamento?
Quanto à vacina, ela é importante, mas chegaram poucas, e vai demorar para chegar aos interessados (nem vou comentar mais quem não quer ser vacinado, deixa eles…). Então, a melhor vacina é a prevenção, nada mudou desde março: mãos lavadas, álcool-gel, máscara e distanciamento. Será que não dá para aguentar um pouco mais? Será que não podemos respeitar a fila, deixando-a para os idosos e agentes de saúde, que foram os mais atingidos pela pandemia?
Como disse acima, não importa sua crença religiosa, mesmo aquele que não a tem, deve desejar o melhor ao seu próximo, sem ser egoísta ao querer se beneficiar porque pode furar filas. Com um pouco de esforço, podemos derrubar esse estigma de que somos o país da idiossincrasia. Bora cada um fazer a sua parte?