Buenas,
Como a pessoa não se acostuma com coisa fácil, apesar do ditado dizer o contrário, resolvi manter a linha da crônica da semana passada e investir com brio em outro assunto polêmico. Não é fácil, mas gosto de alimentar debates com conteúdo, é uma das bandeiras que me orgulho em bradar.
Eu tive a felicidade de assistir o primeiro “Sítio do Picapau Amarelo”. Programa deveras lúdico e educativo, me motivou para encarar seus livros, iniciando minha carreira de leitor. “Os doze trabalhos de Hércules” eu li umas três vezes, ambicionava ter aquele grande livro em minha estante parca e esvaziada. Os livros eram caros e inacessíveis nos anos 1980. Hoje tenho duas edições!
Sua obra embalou minha infância e aprendi mitologia grega com os personagens do sítio, que usavam o pó de pirlimpimpim para viajar pelo tempo e pelo espaço, vivendo aventuras ao lado de Hércules e Perseu.
Lobato, que praticamente nunca saiu das prateleiras dos livros infanto-juvenis desde os anos 1920, voltou a ser notícia, desta vez, negativamente. Ele está sendo considerado racista. Sim, há algumas cartas em que ele cita a KKK, quando trata do atraso do Brasil, pois é um país de mestiços, logo, “está perdido”. Essa visão é do séc. XIX. No livro “Os sertões”, de 1902, de Euclides da Cunha, ele prega isso. Há dois anos, foi dito por um político que o brasileiro herdou a indolência do índio e malandragem do negro. Não são pensamentos abandonados no país, apesar de retrógrados.
Recentemente vi na Bahia e em São Paulo famílias brancas e suas “funcionárias”, todas negras, com uniformes, administrando os filhos das patroas. A cena lembrava as pinturas de Jean-Baptiste Debret, que retratava os senhores indo à frente e atrás uma fila de negros escravos, na bela capital carioca. Ou seja, esse tipo de leitura de mundo não é original e, infelizmente, não será extinta tão cedo, apesar de todas as campanhas para isso.
Isso aparece nos livros dele. Tia Nastácia era a cozinheira negra que preparava comidas maravilhosas para os netos de dona Benta, sua patroa branca, é claro. Digo isso, não com desmerecimento, mas com conhecimento que esse não só era, mas ainda é um retrato do Brasil. Quando Emília, a boneca de pano desbocada e sem limites, chama ela de macaca, ou Pedrinho, um adolescente mimado pela avó, desdenha da mesma, tem sim um tom pejorativo. Porém, não estamos vendo não um ato racista em si, mas um retrato de um mundo que tem quase 100 anos que persiste. Temos de lembrar que muita gente se comporta muito pior que a Emília e não são personagens ficcionais. Devemos, isso sim, aprender com o passado, não eliminá-lo de todo.
Por isso digo: não podemos esquecer que Monteiro Lobato teceu comentários lamentáveis, mas não podemos eliminar o que ele tem de bom. Ele criou e incentivou gerações inteiras ao longo do século XX de leitores. E fez muito mais que isso. Lembram de Lima Barreto, escritor, negro, funcionário público, filho de ex-escravos, autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, só conseguiu ser publicado quase como um favor, em 1912.
Lobato, que criou a primeira editora nacional, quis reeditar seus livros. Foi atrás dele pessoalmente. Fez o que pode para ajudar, relançou sua obra em nível nacional, tentou levá-lo para eventos. Porém, uma vida inteira de discriminação, que gerou baixa auto-estima, levou-o ao alcoolismo, que tirou sua vida aos 41 anos.
Além disso, Lobato publicou livros como: “O escândalo do ferro e petróleo”, criou campanhas e empresas para achar petróleo, ainda nos anos 1930 e 1940. Tal qual Policarpo Quaresma, um ufanista apaixonado pelo seu país, denuncia o desinteresse pela pátria e a corrupção quando a ditadura do Estado Novo dominava. O que ele consegue? Ser condenado e preso por quatro meses, libertado após apelo da comunidade acadêmica. A desilusão era tanta, que chegou a mudar-se para Buenos Aires, onde era idolatrado pela juventude. Voltou para São Paulo para falecer em 1948.
Infelizmente, não teve a felicidade de acompanhar a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, nem a Petrobrás, ambas em 1954. A briga comprada pelo escritor só teve sucesso após verba e anuência (poderia dizer autorização?) do governo norte-americano, depois do apoio brasileiro na 2º Grande Guerra Mundial.
Ele também não pode ver sua bisneta reeditar suas obras e retirar as frases que estão gerando a celeuma em torno do racismo. Isso que não viram ainda o pó de pirlimpimpim que citei lá no início. Ele é uma clara alusão ao uso da cocaína, que à época, tinha o uso incentivado por médicos como Freud.
Meus filhos assistiram tanto a série antiga quanto a nova e nenhum deles tornou-se racista ou tratou mal pessoas negras ou humildes. Ambos me surpreendem diariamente pelo engajamento na defesa dos direitos humanos, por iniciativa própria, sem pressão dos pais. Quando estava dando aulas de literatura, sempre buscava contextualizar o mundo que cercava a criação desse livro, além da vida do escritor. Monteiro Lobato foi um dos maiores homens que esse país já viu, apesar de sua altura diminuta. Não precisamos acabar com seu legado, podemos sim, contextualizar sua obra com notas de rodapé, para leituras autônomas.
E digo mais, eu nunca cheirei um pó buscando “viajar”, afinal, entendia que era ficção. A música “Pra viajar no Cosmos não precisa gasolina”, escrita por Nei Lisboa nos anos dourados do rock gaúcho, resume meu modo de pensar.
Tenho uma sugestão: para quem quer “viajar” e entender um pouco mais desse mundo complexo, abra um livro, alimente sua mente e viva mais leve. O mundo anda complicado demais para pesarmos tanto nossos dias e avaliações…