Buenas,
Não devia meter a colher em polêmicas, ouço sempre de amigos, elas trazem desgastes e críticas, além do linchamento virtual, atualmente chamado de “cancelamento”. Porém, o papel de um cronista é trazer assuntos relevantes para o debate, como: estamos sozinhos no universo? Ou: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
Todo debate é válido, desde que civilizado e com argumentos lógicos e fundamentados. O papel de um cronista é acrescentar, quando possível, um algo mais às leituras desse mundo. Muitos cronistas do passado, para sobreviver à profissão, buscaram refúgio na ficção, fugindo do cotidiano cruel pelo simples fato que ele é real.
Drummond, Rubem Braga e Machado de Assis souberam manejar suas penas e máquinas de escrever como poucos, lidando com maestria com o material mais sensível e perigoso de todos os tempos: o homem. Longe de mim querer comparar-me ao que eles foram e fizeram. Posso, no máximo, ombrear-me em duas coisas: todos fomos funcionários públicos e produzimos nossa literatura de subsistência nas horas de folga. Pronto, o parâmetro acaba aqui.
Depois dessa preventiva introdução, adentro no assunto propriamente dito: a discussão sobre o Hino Sul-riograndense. Durante a posse da câmara de vereadores de Porto Alegre, um grupo de vereadores negou-se a cantar o hino, pois o consideram racista, gerando um debate na casa.
Um deputado estadual abriu processo para mudanças na letra. Na frase: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, segundo o protesto dos vereadores, pode-se entender que os negros que vieram da África foram escravizados por não terem virturde. Quem não tinha virtude eram os donos do poder ao longo dos tempos, não importando em que lugar do planeta estava, que escravizaram povos pelos motivos mais diversos, não importando a sua cor.
É extremamente vil achar que alguém “tornou-se” escravo por não ter virtude, como parece na letra do hino. A escravidão desde sempre teve caráter opressor de quem usa da força para impor-se sobre um povo, visando seu engrandecimento financeiro.
Porém, não podemos esquecer do assunto tratado. Um hino possui caráter ufanista, que visa enaltecer a história de um povo. O hino, oficializado em 1966, é obrigatório em encerramentos de eventos oficiais. Nos estádios de futebol, quando começa a entoar o hino nacional, muitas vezes os torcedores gaúchos, mesmo os fanáticos colorados e gremistas, unem-se a pleno pulmão para cantar o hino do RS por cima do Nacional, num ato fanfarrão típico do futebol.
E canta-se todo o hino, sem omissão de trechos. Tenho um amigo, colorado, como eu, que sempre cantou ao meu lado quando dos embates futebolísticos, e nunca o vi reclamar que se sentia ofendido por essa frase em questão, mesmo sendo ele negro e de origem humilde.
Porém, como disse, o tema é sensível e gerou discussões acaloradas em defesa da relevância histórica enquanto outros exigem um revisionismo histórico do mesmo. O protesto dos vereadores negros que tomaram posse recentemente tem fundamento extremamente relevante. Eu tenho um filho negro, adotivo, e com deficiência auditiva, como já disse em outra oportunidade, possuo uma vaga idéia da dívida histórica que eles estão cobrando. Claro que não totalmente, pois nunca senti na pele o mesmo que eles, mas estudo historicamente a discriminação ao longo dos tempos.
Como gosto de falar de história, acrescento outra informação relevante para esse debate. Em inglês, escravo é “slave”, palavra que surgiu ainda no tempo dos romanos e gregos, lembrados por suas “virtudes e glórias” em uma parte eliminada de nosso hino em 1966. Eles eram famosos pela cultura e criação da democracia, mas escravizaram diversos povos, dentre eles os Eslavos, povo extremamente branco do leste europeu. Daí originou a palavra latina “Eslclavus”, que é o mesmo que eslavo.
Ou seja, a escravidão não é uma chaga exclusiva dos povos de origem africana, mas eles foram os mais prejudicados ao longo dos séculos por esse crime contra a humanidade. A estrofe que foi retirada do hino enaltece os gregos e romanos, que escravizaram povos inteiros, não importando a cor, a raça ou origem.
Um hino tem a função ufanista de exaltar glórias passadas, mesmo que seja sobre uma guerra que perdemos fragorosamente, em que os líderes trocavam de lado, dependendo da oferta, que aceitavam trocar vidas por terras, infelizmente.
Se nos atermos a isso, deveríamos rasgar não só o hino gaúcho, também o nacional, dentre outros. Mesmo assim, esse hino, cantado a pleno vapor por mim em dezenas de oportunidades, trás um certo orgulho de termos lutado contra o desgoverno federal, que esqueceu as províncias logo após a Independência do Brasil, só lembrando quando era para cobrar impostos e sobretaxar produtos, como o charque, um dos principais motivos da Revolução Farroupilha, ocorrida entre 1835 e 1945.
Ainda não tenho uma opinião formada sobre o assunto, tão complexo que é. Afinal, discute o orgulho de um estado por seus símbolos, mas também as feridas não cicatrizadas de quem ainda sente as consequências de um crime tão lesivo como fora a escravidão. O mais importante é manter o debate civilizadamente, como é feito em alguns grenais quando as torcidas do Internacional e do Grêmio ocupam o mesmo espaço.
Só sinto pelo meu filho. Como disse, ele é parceiro de assistir aos jogos do Colorado no estádio. Mesmo sem ouvir, ele sente a vibração da torcida, participando do jeito dele dos cantos de apoio ao time, e vibrando com o hino, algumas vezes abraçado à bandeira do RS, sem ater-se à polêmicas ou escolher partidos, torcendo pela vitória do time de seu estado. infelizmente, ele nunca teve a oportunidade de ouvir o hino Sul Rio-grandense…